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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

TEXTO DO DIA - ENSAIO SOBRE O ENSAIO

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Que estas palavras possam abrir brechas de entendimento, possam servir de trampolim para vôos mais amplos, trazendo a luz da compreensão e o calor do coração.
Parte III

Mas por que uma cegueira branca? Por que uma cegueira às avessas? Talvez porque diante de tudo que temos hoje em dia, do espaço tão cumulado por excessos de estimulação em todos os sentidos, de consumo, de informação, de ruídos e de todos os subterfúgios tecnológicos de que dispomos, o espaço esteja por demais preenchido pelo princípio da luz (com minúscula) - aqui usado como metáfora da força de expansão, da atividade constante e incessante para fora, extrovertida; o ‘iluminismo da razão’ – a força do masculino e da assertividade. Falta-nos o silêncio, o recolhimento e o movimento de voltar-se para dentro que nos é proposto pela escuridão. Falta-nos olhar para dentro. Ficamos cegos de tanta luz, de tanto nos voltar para fora. Tudo perde o contorno, o contraste, e conseqüentemente perdemos a capacidade de discernimento, de discriminação. Queremos só a expansão, queremos só avançar a qualquer custo, queremos ser só jovens, só primaveras e verões eternos. Mas essa luz não é a Luz da Presença Divina retratada na águia, que simbolizava a Luz do Espírito; aqui ela representa o princípio do avançar, da assertividade de um mental inferior. A mente que quer saber tudo, controlar tudo. O ambiente retratado é essencialmente urbano. Não há nada natural. Tudo é construído. Perdeu-se o contato com o que nos é mais básico. Não há natureza. Esta é a representação da mente racional inferior. Essa mente tem um acervo de informações infinito, ela vê tudo, mas falta-lhe saber/ver o que é preciso fazer neste momento. O princípio do escuro, por sua vez, sabe que não é preciso saber tudo, nem ter todos os conhecimentos racionais. Essa mente pensa assim: ‘eu terei acesso a todas as informações de que precisarei. Eu saberei tudo que for necessário saber nesta situação’; ela é contextualizada e se atualiza a cada momento. O saber não é racional, nem teórico. É um pensar enraizado nas sensações e intuições e na confiança que vem disso. Essa mente fareja, cheira, ouve agudamente, sente na pele, enfim usa todos os sentidos e retira todas as informações que o corpo é capaz de obter para uma dada situação. Falta-nos honrar o princípio da escuridão; aqui tido não como treva interna, da qual falava no início, mas como o conjunto das ações que vêm com o feminino: o recolhimento, o desenvolvimento da intuição, da sabedoria. Porque com luz demais (com o movimento incessante para fora), também ficamos cegos.

Aos que enxergam, à mulher e ao expectador, cabe a dor, a tristeza de quem vê e sabe o que de fato está acontecendo. Sentimos ao mesmo tempo o desespero daqueles que não enxergam e a tristeza dos que enxergam... as imagens do corpo humano são feias, são grotescas, o prazer (?) vem unido à sofreguidão e à custa do abuso, da exploração, do aviltante, ou como válvula de escape. Há sempre sofrimento e desespero permeando as situações. Lama Gangchen Rimpoche dando ensinamentos, certa vez disse: “vocês falam tanto do sexo... comparado à beatitude e ao êxtase que a mente iluminada alcança, o prazer sexual se parece com um pano de chão bem grosseiro e sujo, enquanto o prazer que a mente iluminada sente se parece com um tecido fino cheio de brocados e bordado com pedras preciosas”. Nessa fala ele se referia à condição contínua que a mente desperta – iluminada – experimenta com tudo.

Cabe aqui um esclarecimento crucial: quando Sidarta despertou sua mente do sono da ignorância, quando se iluminou, a primeira coisa que lhe aconteceu foi chorar... chorar de tristeza por ter chegado a um local tão maravilhoso e ver que ninguém via ou conhecia a Realidade que ele tinha tocado. Chorar por realizar a naturalidade da verdadeira natureza da mente, por ver a beleza daquilo que É e, ao mesmo tempo, presenciar a situação em que todos estão (estamos). A percepção do Feio e do Belo permeiam e acompanham todo o tempo a percepção/visão da mente iluminada e a percepção/visão da mente obscurecida. O que a mente iluminada vê e toca é naturalmente Belo, não há mácula; enquanto que todas as queixas, insatisfações e sofrimento ficam por conta da mente contaminada e do que ela gerou. É como o momento no filme em que um único personagem recobra a (natural) visão perdida, voltando à sua condição original (primeira): a sensação que ele teve foi de Beleza.

Também o médico, mesmo sem enxergar, no final do filme, busca relembrar a beleza de sua esposa. É uma memória interna, uma vaga lembrança que a alma tem de uma condição de harmonia já experienciada. Mas a situação daquele que enxerga é, ao mesmo tempo, dura como era duro enxergar o que acontecia no filme, por ver todas as graves conseqüências que a cegueira traz. Por isso Sidarta chorou e fez o voto - compromisso - de transmitir o que tinha alcançado em ensinamentos para que outros pudessem também despertar. A esta privilegiada condição de ter um guia confiável em meio ao Samsara, o Budismo chama ‘ter um refúgio’. Um refúgio naquele que já saiu do sofrimento, confiando nele, no que ele vê e nos companheiros de caminhada. Mas isso requer entrega. Uma cena que remete a isso, e que é talvez a cena mais comovente do filme, é aquela em que os personagens se deixam guiar pela mulher, aquela que enxerga, e caminham pela primeira vez como grupo, unidos, em meio ao caos. A partir disso, começa o caminho de volta para casa, onde os personagens, ainda que cegos, estão protegidos e vão poder começar a relaxar.

Por isso, da próxima vez que você ficar indignado ou furioso, lembre-se: “estamos todos cegos, não sabemos o que estamos fazendo e nem para onde estamos indo”. Faça você um firme compromisso de se livrar da sua cegueira e siga.

Ao contrário do filme, em que não se sabe como sair disso, ou que recobrar a visão pareça aleatório ou casual (pois lá, a cegueira assim como vem, vai), existem métodos, mestres vivos que enxergam (já despertos) e o caminho já foi trilhado por vários antes de nós. E da “Verdade da causa surge a Verdade do efeito”.

Ainda que não saibamos explicar como, podemos pensar como os personagens do filme diante daquele recém liberto do vírus da cegueira: “se aconteceu com ele, pode acontecer comigo”. Quando todas as causas foram criadas e as condições são oportunas, o efeito é inevitável.
Texto de Isabela Bisconcini -

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